Carlos Drummond nasceu em 1902, na pequenina cidade mineira de Itabira do Mato Dentro. Morreu em 1987, deixando uma das mais vastas obras de nossa poesia, além de seus contos e crônicas.
Suas Poesias
SER
O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa, sem carne,
sem nome.
As vezes o encontro num
encontro de nuvem.
Apoia em meu ombro seu
ombro nenhum.
Interrogo meu filho, objeto
de ar: em que
gruta ou concha quedas abstrato ?
Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste, contudo
chamava-te
como ainda te chamo (além do amor)
onde nada,
tudo aspira a criar-se.
O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.
A FALTA QUE AMA
Entre areia,
sol e grama o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.
Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.
A transparência da hora corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora nem ri,
patinando muros.
já nem se escuta a poeira que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se inteira,
em letras de conclusão.
Por que é que revoa à toa o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa o tempo,
chaga sem pus?
O inseto petrificado
na concha ardente do dia une o
tédio do passado a uma futura energia.
No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É falta ou ele que sente o sonho
do verbo amar
QUADRILHA
João amava Teresa que amava
Raimundo que amava Maria
que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos,
Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre,
Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e
Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
NÃO SE MATE
Carlos, sossegue,
o amor é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe o
que será. Inútil você resistir ou
mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserves-e todo para as bodas
que ninguém sabe quando virão,
se é que virão. O amor, Carlos,
você telúrico, a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas, vitrolas, santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe de quê, praquê.
Entretanto você caminha melancólico e vertical.
Você é a palmeira,
você é o grito que ninguém ouviu no teatro e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não,
no claro, é sempre triste, meu filho,
Carlos, mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
INSTANTE
Uma semente engravidava a tarde.
Era o dia nascendo, em vez da noite.
Perdia amor seu hálito covarde,
e a vida, corcel rubro, dava um coice,
mas tão delicioso, que a ferida no peito transtornado,
aceso em festa, acordava, gravura enlouquecida,
sobre o tempo sem caule, uma promessa.
A manhã sempre-sempre,
e dociastutos eus caçadores a correr,
e as presas num feliz entregar-se,
entre soluços.
E o que mais, vida eterna, me planejas?
O que se desatou num só momento
não cabe no infinito, e é fuga e vento.
AMAR
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar ?
sempre, e até de olhos vidrados amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta,
e o que, na brisa marinha, é sal,
ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
MEMÓRIA
Amar o perdido deixa
confundido este coração.
Nada pode o olvido contra
o sem sentido apelo do Não.
As coisas tangíveis tornam-se
insensíveis à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas, essas ficarão.
ÁPORO
Um inseto cava cava
sem alarme perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite raiz e minério?
Eis que o labirinto (oh razão, mistério)
presto se desata: em verde,
sozinha, antieuclidiana,
uma orquídea forma-se
NO MEIO DO CAMINHO
No meio do
caminho tinha
uma pedra tinha uma pedra
no meio do caminho tinha
uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra.
Nunca esquecerei desse
acontecimento na vida de minhas
retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que
no meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
ELEGIA
Ganhei (perdi) meu dia. E baixa a coisa fria também chamada noite,
e o frio ao frio em bruma se entrelaçam, num suspiro.
E me pergunto e me respiro na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava, os grandes sóis violentos,
me sentia tão rico deste dia e lá se foi secreto, ao serro frio.
Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera bem antes
sua vaga pedraria? Mas quando me perdi,
se estou perdido antes de haver
nascido e me nasci votado à perda de frutos que não tenho nem colhia?
Gastei meu dia. Nele me perdi. De tantas perdas uma clara via por certo
se abriria de mim a mim, estrela fria. As arvores lá fora se meditam.
O inverno é quente em mim, que o estou berçando e em mim
vai derretendo este torrão de sal que está chorando.
Ah, chega de lamento e versos ditos ao ouvido de alguém sem rosto
e sem justiça, ao ouvido do muro, ao liso ouvido gotejante de uma piscina
que não sabe o tempo, e fia seu tapete de água, distraída.
E vou me recolher ao cofre de fantasmas,
que a notícia de perdidos lá não chegue nem açule
os olhos policiais do amor-vigia. Não me procurem que me perdi
eu mesmo como os homens se matam, e as enguias à loca se recolhem, na água fria.
Dia, espelho de projeto não vivido, e contudo viver era tão flamas
na promessa dos deuses; e é tão ríspido em meio aos oratórios já vazios em que
a alma barroca tenta confortar-se mas só
vislumbra o frio noutro frio. Meu Deus, essência estranha ao vaso
que me sinto, ou forma vã, pois que, eu essência, não habito vossa
arquitetura imerecida; meu Deus e meu conflito, nem vos dou conta de mim
nem desafio as garras inefáveis: eis que assisto a meu desmonte palmo
a palmo e não me aflijo de me tornar planície em que já pisam servos e bois e militares
em serviço da sombra, e uma criança que o tempo novo me anuncia e nega.
Terra a que me inclino sob o frio de minha testa que se alonga,
e sinto mais presente quando aspiro em ti o fumo
antigo dos parentes, minha terra,
me tens; e teu cativo passeias brandamente como ao que vai morrer se estende
a vista de espaços luminosos, intocáveis: em mim o que resiste são teus poros.
E sou meu próprio frio que me fecho Corto o frio da folha. Sou teu frio. E sou meu próprio frio que
me fecho longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram sete vezes por dia em sete dias de sete vidas de ouro, amor,
fonte de eterno frio, minha pena deserta, ao fim de março, amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.
COMPOSIÇÃO
E é sempre a chuva nos desertos sem guarda-chuva,
e a cicatriz, percebe-se, no muro nu.
E são dissolvidos fragmentos de estuque e o pó das demolições de tudo
que atravanca o disforme país futuro.
Débil, nas ramas, o socorro do imbu. Pinga, no desarvorado campo nu.
Onde vivemos é água.
O sono, úmido, em urnas desoladas. Já se entornam, fungidas,
na corrente,
as coisas caras que eram pura delícia, hoje carvão.
DESCOBERTA
O dente morde a fruta envenenada a fruta morde
o dente envenenado o
veneno morde a fruta e morde o dente o dente,
se mordendo, já descobre
a polpa deliciosíssima do nada.
COMUNHÃO
Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo eu no centro.
Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis
pela expressão corporal e
pelo que diziam no silêncio de suas roupas além da moda
e de tecidos; roupas não anunciadas
nem vendidas.
Nenhum tinha rosto. O que diziam escusava resposta,
ficava, parado, suspenso no salão, objeto denso, tranqüilo.
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo. Surgiram todos os rostos, iluminados.
ELEGIA 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio,
a concepção. A noite, se neblina, abre guarda-chuvas de bronze ou recolhem
aos volumes de sinistras bibliotecas. Amas a noite pelo poder de aniquilamento
que encerra e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina e
te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas sobre coisas do
tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar
tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Suas Poesias
SER
O filho que não fiz
hoje seria homem.
Ele corre na brisa, sem carne,
sem nome.
As vezes o encontro num
encontro de nuvem.
Apoia em meu ombro seu
ombro nenhum.
Interrogo meu filho, objeto
de ar: em que
gruta ou concha quedas abstrato ?
Lá onde eu jazia,
responde-me o hálito,
não me percebeste, contudo
chamava-te
como ainda te chamo (além do amor)
onde nada,
tudo aspira a criar-se.
O filho que não fiz
faz-se por si mesmo.
A FALTA QUE AMA
Entre areia,
sol e grama o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.
Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.
A transparência da hora corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora nem ri,
patinando muros.
já nem se escuta a poeira que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se inteira,
em letras de conclusão.
Por que é que revoa à toa o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa o tempo,
chaga sem pus?
O inseto petrificado
na concha ardente do dia une o
tédio do passado a uma futura energia.
No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É falta ou ele que sente o sonho
do verbo amar
QUADRILHA
João amava Teresa que amava
Raimundo que amava Maria
que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos,
Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre,
Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e
Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
NÃO SE MATE
Carlos, sossegue,
o amor é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe o
que será. Inútil você resistir ou
mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserves-e todo para as bodas
que ninguém sabe quando virão,
se é que virão. O amor, Carlos,
você telúrico, a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas, vitrolas, santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe de quê, praquê.
Entretanto você caminha melancólico e vertical.
Você é a palmeira,
você é o grito que ninguém ouviu no teatro e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não,
no claro, é sempre triste, meu filho,
Carlos, mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
INSTANTE
Uma semente engravidava a tarde.
Era o dia nascendo, em vez da noite.
Perdia amor seu hálito covarde,
e a vida, corcel rubro, dava um coice,
mas tão delicioso, que a ferida no peito transtornado,
aceso em festa, acordava, gravura enlouquecida,
sobre o tempo sem caule, uma promessa.
A manhã sempre-sempre,
e dociastutos eus caçadores a correr,
e as presas num feliz entregar-se,
entre soluços.
E o que mais, vida eterna, me planejas?
O que se desatou num só momento
não cabe no infinito, e é fuga e vento.
AMAR
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar ?
sempre, e até de olhos vidrados amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia, o que ele sepulta,
e o que, na brisa marinha, é sal,
ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.
MEMÓRIA
Amar o perdido deixa
confundido este coração.
Nada pode o olvido contra
o sem sentido apelo do Não.
As coisas tangíveis tornam-se
insensíveis à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas, essas ficarão.
ÁPORO
Um inseto cava cava
sem alarme perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite raiz e minério?
Eis que o labirinto (oh razão, mistério)
presto se desata: em verde,
sozinha, antieuclidiana,
uma orquídea forma-se
NO MEIO DO CAMINHO
No meio do
caminho tinha
uma pedra tinha uma pedra
no meio do caminho tinha
uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra.
Nunca esquecerei desse
acontecimento na vida de minhas
retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que
no meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
ELEGIA
Ganhei (perdi) meu dia. E baixa a coisa fria também chamada noite,
e o frio ao frio em bruma se entrelaçam, num suspiro.
E me pergunto e me respiro na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava, os grandes sóis violentos,
me sentia tão rico deste dia e lá se foi secreto, ao serro frio.
Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera bem antes
sua vaga pedraria? Mas quando me perdi,
se estou perdido antes de haver
nascido e me nasci votado à perda de frutos que não tenho nem colhia?
Gastei meu dia. Nele me perdi. De tantas perdas uma clara via por certo
se abriria de mim a mim, estrela fria. As arvores lá fora se meditam.
O inverno é quente em mim, que o estou berçando e em mim
vai derretendo este torrão de sal que está chorando.
Ah, chega de lamento e versos ditos ao ouvido de alguém sem rosto
e sem justiça, ao ouvido do muro, ao liso ouvido gotejante de uma piscina
que não sabe o tempo, e fia seu tapete de água, distraída.
E vou me recolher ao cofre de fantasmas,
que a notícia de perdidos lá não chegue nem açule
os olhos policiais do amor-vigia. Não me procurem que me perdi
eu mesmo como os homens se matam, e as enguias à loca se recolhem, na água fria.
Dia, espelho de projeto não vivido, e contudo viver era tão flamas
na promessa dos deuses; e é tão ríspido em meio aos oratórios já vazios em que
a alma barroca tenta confortar-se mas só
vislumbra o frio noutro frio. Meu Deus, essência estranha ao vaso
que me sinto, ou forma vã, pois que, eu essência, não habito vossa
arquitetura imerecida; meu Deus e meu conflito, nem vos dou conta de mim
nem desafio as garras inefáveis: eis que assisto a meu desmonte palmo
a palmo e não me aflijo de me tornar planície em que já pisam servos e bois e militares
em serviço da sombra, e uma criança que o tempo novo me anuncia e nega.
Terra a que me inclino sob o frio de minha testa que se alonga,
e sinto mais presente quando aspiro em ti o fumo
antigo dos parentes, minha terra,
me tens; e teu cativo passeias brandamente como ao que vai morrer se estende
a vista de espaços luminosos, intocáveis: em mim o que resiste são teus poros.
E sou meu próprio frio que me fecho Corto o frio da folha. Sou teu frio. E sou meu próprio frio que
me fecho longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram sete vezes por dia em sete dias de sete vidas de ouro, amor,
fonte de eterno frio, minha pena deserta, ao fim de março, amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.
COMPOSIÇÃO
E é sempre a chuva nos desertos sem guarda-chuva,
e a cicatriz, percebe-se, no muro nu.
E são dissolvidos fragmentos de estuque e o pó das demolições de tudo
que atravanca o disforme país futuro.
Débil, nas ramas, o socorro do imbu. Pinga, no desarvorado campo nu.
Onde vivemos é água.
O sono, úmido, em urnas desoladas. Já se entornam, fungidas,
na corrente,
as coisas caras que eram pura delícia, hoje carvão.
DESCOBERTA
O dente morde a fruta envenenada a fruta morde
o dente envenenado o
veneno morde a fruta e morde o dente o dente,
se mordendo, já descobre
a polpa deliciosíssima do nada.
COMUNHÃO
Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo eu no centro.
Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis
pela expressão corporal e
pelo que diziam no silêncio de suas roupas além da moda
e de tecidos; roupas não anunciadas
nem vendidas.
Nenhum tinha rosto. O que diziam escusava resposta,
ficava, parado, suspenso no salão, objeto denso, tranqüilo.
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo. Surgiram todos os rostos, iluminados.
ELEGIA 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio,
a concepção. A noite, se neblina, abre guarda-chuvas de bronze ou recolhem
aos volumes de sinistras bibliotecas. Amas a noite pelo poder de aniquilamento
que encerra e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina e
te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas sobre coisas do
tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar
tua derrota e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Nenhum comentário:
Postar um comentário